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28 de dez. de 2016

Teologia e Piedade

Lyle D. Bierma*

Voltemos agora às duas maneiras sugeridas anteriormente nas quais a teologia de Calvino é relevante para a igreja mundial no século 21. Essas duas maneiras tem a ver não tanto com o conteúdo da teologia de Calvino, mas com toda a sua maneira de fazer teologia.

Em primeiro lugar, vejamos como Calvino relaciona teologia e piedade. A primeira edição das Institutas de Calvino, em 1536, tinha o seguinte título longo e interessante – “Institutas da Religião Cristã, contendo virtualmente toda a soma da piedade e tudo o que necessita ser conhecido sobre a doutrina da salvação: Uma obra que vale a pena ser lida por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Para começar, trata-se de “institutas”. Institutio em latim significa algo como “instrução básica”, “compêndio” ou “manual de instruções”. Mas um manual de que – de teologia? Não, um manual “que contém virtualmente toda a soma da piedade”, um manual “que vale a pena ser lido por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Não se trata de um livro primariamente sobre teologia, mas sobre piedade. Obviamente existe muita teologia no livro. Mas para Calvino a reflexão teológica nunca é um fim em si mesma. A teologia é sempre utilizada a serviço da piedade; ela deve conduzir à piedade. Assim, a teologia de Calvino algumas vezes tem sido chamada de theologia pietatis, uma “teologia da piedade”.

Mas o que Calvino quer dizer com piedade? Na mesma sentença de abertura das Institutas, nós lemos: “Quase toda a sabedoria que possuímos... consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos” (1.1.1). Na seção seguinte, Calvino passa a dizer que, quando se trata do conhecimento de Deus, “nós não diremos que... Deus seja conhecido onde não existe religião ou piedade. . . Eu denomino ‘piedade’ aquela reverência unida ao amor a Deus que o conhecimento dos seus benefícios induz” (1.2.1). Ou então: “Aqui certamente está a religião pura e verdadeira: a fé tão unida a um sincero temor a Deus que esse temor também inclui uma reverência voluntária e leva consigo o culto legítimo que está prescrito na lei” (1.2.2).  Portanto, para Calvino o verdadeiro conhecimento de Deus é um conhecimento sobre Deus que é aplicado na piedade ou devoção, isto é, em reverência, fé, amor, adoração, obediência e serviço a Deus. A teologia – o estudo de Deus, a busca de conhecimento acerca de Deus – deve evocar uma resposta de piedade em nós se queremos verdadeiramente conhecer a Deus. Pois, como diz Calvino:

"Como pode o pensamento de Deus penetrar em sua mente sem que você perceba imediatamente que, visto ser obra de suas mãos, você foi... vinculado a ele por direito de criação, você deve a sua vida a ele? – que qualquer coisa que você empreende, qualquer coisa que faz, deve ser atribuída a ele? (1.2.2)".

A teologia deve levar à piedade.

É exatamente assim que Calvino realiza a sua própria reflexão teológica ao longo das Institutas; as Institutas são na realidade um manual de instruções sobre a piedade. Por exemplo, ao tratar acerca de Deus, o Criador, Calvino não somente explica os detalhes da doutrina da criação, mas também exorta o leitor a “comprazer-se piedosamente nas obras de Deus” (1.14.20). O que significa confessar que Deus é o Criador dos céus e da terra? Primeiramente, diz ele, significa refletir sobre a grandeza do divino Artista mediante a contemplação de suas maravilhosas obras de arte. A criação reflete “essas imensas riquezas de sua sabedoria, justiça, bondade e poder... [e] nós devemos meditar sobre elas longamente, considerá-las em nossas mentes com seriedade e fidelidade, e evocá-las repetidamente” (1.14.21). Mas a nossa resposta deve ir além disso. Nós também devemos compreender, diz Calvino, que Deus criou todas as coisas para o bem da humanidade; devemos “sentir o seu poder e graça em nós mesmos e nos grandes benefícios que ele nos concedeu, e assim sermos levados a confiar, invocar, louvar e amá-lo” (1.14.22). Isso é piedade. Essa é uma teologia que conduz à piedade. Para Calvino, estudar a doutrina da criação não é mero exercício intelectual; envolve a pessoa inteira – coração, alma, mente e força. Como ele disse no final dessa seção acerca da criação: “Convidados pela grande doçura da beneficência e bondade [de Deus], dediquemo-nos a amá-lo e servi-lo de todo o nosso coração” (ibid.).

O mesmo se aplica à maneira como Calvino trata da predestinação, uma questão doutrinária sobre a qual ele tem sido freqüentemente mal-compreendido e violentamente atacado. O historiador americano Will Durant certa vez escreveu: “Nós sempre acharemos difícil amar o homem [Calvino] que obscureceu a alma humana com a mais absurda e blasfema concepção acerca de Deus de toda a longa e honrada história das tolices”. E o tele-evangelista americano Jimmy Swaggart certa vez afirmou: “Creio que Calvino fez com que incontáveis milhões de almas fossem para a perdição”. Todavia, a predestinação é um conceito bíblico, um conceito com o qual os teólogos ocidentais tinham se debatido por mil anos antes de Calvino. O que Calvino faz com essa doutrina é o que ele faz com toda a sua teologia – ele a relaciona com a piedade do crente. A doutrina da eleição, diz ele, em primeiro lugar acentua para nós que a salvação é sola gratia: é totalmente e inteiramente pela graça de Deus. Portanto, a doutrina da eleição deve nos humilhar, porque ela nos defronta com o fato de que não temos nenhuma contribuição a dar para a nossa salvação; ela é unicamente uma obra de Deus. Deus nos escolheu antes que nós o escolhêssemos. Em segundo lugar, essa doutrina devia levar-nos a glorificar a Deus por essa grande dádiva que ele graciosamente nos concedeu (3.21.1). Por fim, ela pode assegurar-nos do caráter definitivo da nossa salvação, pois Deus prometeu em Romanos 8 que aqueles a quem ele predestinou para a salvação nunca irão separar-se do seu amor. Como Calvino disse: “Cristo nos libertou da ansiedade nessa questão... Quando somos dele, somos salvos para sempre” (3.24.6). Calvino não pretendeu que a predestinação fosse uma doutrina aterrorizante para o crente, mas uma doutrina consoladora.

Essa teologia da piedade foi assimilada por muitas confissões reformadas na própria época de Calvino e nos anos posteriores à sua morte. A denominação à qual eu e o professor Bosma pertencemos, a Igreja Cristã Reformada da América do Norte, subscreve três dessas antigas confissões reformadas – a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort – e em todas as três está presente essa aplicação pessoal, prática e experimental das doutrinas. Por exemplo, a Confissão Belga de 1561 explica com alguns detalhes a doutrina da providência de Deus, mas também dá atenção a qual deve ser a nossa resposta a esse ensino (Art. 13). Nós não devemos ser excessivamente curiosos quanto às obras de Deus que ultrapassam a compreensão humana. Devemos adorar as decisões de Deus com humildade e reverência. Devemos reconhecer “o conforto indizível” que essa doutrina nos dá em seu ensino de que nada nos pode acontecer por acaso. E podemos repousar no pensamento de que “Deus controla os demônios e todos os nossos inimigos, os quais não podem nos ferir sem a sua permissão e vontade”. Essas são respostas de piedade!

Uma teologia de piedade é ainda mais pronunciada no Catecismo de Heidelberg, de 1563. Como um catecismo, obviamente ele foi concebido como um guia para ensinar, pregar e aprender doutrinas. Mas ele sempre apresenta as doutrinas com um propósito em mente: aplicar essas doutrinas à vida e experiência cristãs; instilar no crente um senso de consolo ou certeza da salvação; evocar no crente uma resposta de gratidão por sua libertação do pecado e da miséria espiritual. Ouça algumas das perguntas: “Como a ressurreição de Cristo nos beneficia?” (P. 45); “Como a volta de Cristo para julgar os vivos e os mortos consola você?” (P. 52); “Que bem lhe faz, todavia, crer em tudo isto?” (P. 59); “Por que ainda precisamos praticar boas obras?” (P. 86); “Por que os cristãos precisam orar?” (P. 116). A reflexão teológica no Catecismo de Heidelberg não é um exercício abstrato. Ela é relevante para a vida e a experiência do crente.

O que Calvino e as confissões fazem aqui não é de fato uma coisa nova. Essa teologia da piedade já estava evidente na tradição humanista cristã na qual Calvino foi formado. Porém, o que é mais importante, ela tem o seu fundamento nas Escrituras, o recurso básico de Calvino na elaboração da sua teologia. Quando Calvino descreve o conhecimento de Deus como um conhecimento sobre Deus que evoca uma resposta de confiança, obediência e amor por Deus, ele está simplesmente ecoando o ensino da própria Escritura. Encontramos já no Antigo Testamento que o conhecimento de Deus não é mera posse de informações sobre Deus. É o reconhecimento dos direitos de Deus sobre nós. É o reconhecimento respeitoso e obediente do poder de Deus, da graça de Deus, das exigências de Deus. Conhecer a Deus é honrá-lo e fazer o que é justo e íntegro. Como Deus diz através do profeta Jeremias:

"Não se glorie o sábio na sua sabedoria... mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor, e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor". (9.23-24)

A implicação é que o Senhor se compraz no amor e na justiça não somente quando ele os pratica, mas também quando nós os praticamos. Então poderemos afirmar que realmente compreendemos e conhecemos a Deus.

O livro de 1 João no Novo Testamento dá ênfase ao mesmo ponto: “Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade” (2.3-4). Portanto, a teologia da piedade de Calvino ressoa com a mensagem da própria Escritura. Pode-se realmente dizer que essa maneira pela qual ele procurou mostrar o valor das Escrituras na sua época não tem relevância em nossos próprios dias?
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* É professor de Teologia Sistemática no Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan. Esse texto é um excerto de uma palestra proferida no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper no dia 28 de agosto de 2003, traduzida pelo Rev. Alderi S. Matos, disponível na íntegra aqui

14 de out. de 2016

A Reforma e a educação: Calvino, Knox e Comênio

Por Hermisten Maia P. da Costa

Introdução

Uma das grandes ênfases das Escrituras diz respeito à educação do povo de Deus. O Senhor diz insistentemente ao povo que preserve a sua Palavra, guardando-a (praticando) e ensinando-a aos seus descendentes. O método estabelecido por Deus que perpassa a todos os outros é o da “repetição” (Shãnâ) (Dt 6.6ss). Não deixa de ser elucidativo, que o Shemá (“ouve”), o “credo judeu” – que consistia na leitura de Deuteronômio 6.4-9; 11.13-21 e Números 15.37-41 –, fosse repetido três vezes ao dia.

Por isso, nada mais natural que um movimento de reforma da igreja, um retorno à Escritura, tenha sido tão enfático na valorização da educação. Nenhuma surpresa será constatar-se que os países que abraçaram a Reforma do século 16 se destacaram pelo ensino e pelo conseqüente desenvolvimento, enquanto os outros perpetuavam as trevas da ignorância medieval.
I. O ensino sistemático da lei

Um princípio importante prescrito na Palavra é que a revelação de Deus foi-nos confiada para que a conheçamos e a pratiquemos (Dt 29.29). Deus provê os princípios, os meios e os fins. Ele mesmo que se dignou dar-nos sua Palavra e tem propósitos definidos e meios estabelecidos para que a sua vontade se cumpra. No Antigo Testamento vemos a educação sendo amplamente praticada dentro do lar, sendo os mestres os próprios pais.
No âmbito nacional, vemos que Deus confiou em especial aos sacerdotes a responsabilidade de ensinar a lei – lendo-a periodicamente diante de todo o povo –, aplicando-a às necessidades de seus ouvintes (Lv 10.11; Dt 17.8-11; 31.9-13/2Rs 12.2). Eles eram conhecidos como “os que tratavam da lei” (Jr 2.8). A fidelidade dos sacerdotes no cumprimento de sua missão servia em geral como “termômetro” para medir a situação espiritual do povo. Quando os sacerdotes se desviavam desse propósito, as conseqüências eram fatais. No 8º século a.C., temos um grave e desolador problema na vida espiritual de Israel (reino do norte): Os sacerdotes não ensinavam mais a lei e o povo, ao longo dos anos, prosseguia em seu caminho de desobediência. Deus demonstra por meio de Oséias (c. 750-723) que o povo era a expressão viva do sacerdote, ainda que, ironicamente, por vezes o povo o acusasse: “O teu povo é como os sacerdotes aos quais acusa…. como é o povo, assim é o sacerdote” (Os 4.4,9). Por outro lado, também é verdade que o povo tornara-se surdo ao apelo divino (Os 8.12; 12.10,13; 2Rs 17.13).

II. A praticidade da Palavra para o ensino e a educação

O escritor da epístola aos Hebreus declara que “A Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4.12). A Palavra de Deus é uma verdade tão viva agora quanto o era quando foi revelada por Deus aos seus servos, que a registraram inspirados pelo Espírito Santo. Ela continua com a mesma eficácia para os questionamentos existenciais do homem moderno. Nosso problema no século 21 – e até mesmo muitos de nós cristãos – é que, com freqüência, sem percebermos, trocamos os preceitos da Bíblia por conselhos de revistas e livros, por modismos veiculados pelos meios de comunicação; substituímos a Bíblia pela psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e até mesmo, astrologia, colocando-as como o nosso parâmetro de comportamento, em detrimento da inerrante, infalível Palavra de Deus, que é a verdade viva e eficaz de Deus para nós. Isso tudo nós fazemos alegando estar sendo práticos, esquecendo-nos de que toda e cada parte do ensino bíblico é urgente e necessariamente prático, relevante para nós.

Quando adotamos essa “prática” contemporânea que destoa das Escrituras, cometemos uma total inversão de valores: assimilamos os conceitos humanos que, quando corretos, nada acrescentam à Palavra mas que, na realidade, na maioria das vezes, estão totalmente equivocados, porque desconhecem a dimensão do eterno, os valores celestiais para a nossa vida aqui e agora e, por isso mesmo, apresentam ensinamentos mundanos, frutos de uma geração corrompida. Tais conceitos assumem na vida da igreja um papel orientador. A igreja, ao contrário disso, é chamada a ser uma antítese ativa contra os valores deste século; ela é convocada a viver a Palavra, a considerá-la como de fato é, a Palavra infalivelmente viva e eficaz para a nossa vida, a Palavra final de Deus para a nossa existência terrena.
A lei de Deus continua sendo o princípio norteador de toda a vida cristã. Deus continua ordenando que nós não adulteremos, não roubemos, não matemos, que honremos os nossos pais, que o adoremos com exclusividade…  O que pode fazer uma igreja que preza a Palavra de Deus senão promover o seu ensino e, mais amplamente, promover uma educação calcada nos preceitos do Senhor?
III. A Reforma e a Educação[1]

A. Calvino e John Knox

Calvino[2] criou uma Academia em Genebra (1559), atingindo alunos estrangeiros vindos de vários países da Europa. A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Europa; o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em universidades de países protestantes como a Holanda.

John Knox[3] (1515-1572), após estudar em Genebra, desenvolveu para a Escócia um plano educacional que contribuiria para o progresso do país nas áreas material e espiritual,[4] tendo a Bíblia como tema principal de estudo. A igreja pagaria as despesas dos alunos. A partir desse plano o Parlamento escocês aprovou em 1646 a criação de uma escola para cada região, seguindo indicação do presbitério, votando-se verba para salário dos professores. Aqui houve uma cooperação entre a Igreja e o Estado, estando a supervisão das escolas e professores entregue à Igreja. Este sistema, tão bem sucedido na Escócia, só viria sofrer alterações significativas no século 19.

B. João Amós Comênio

João Amós Comênio (Comenius)[5] (1592-1670), foi batizado com esse nome em homenagem ao pré-reformador João Hus[6] (lição 8) e iniciador da Igreja Morávia (Irmãos Unidos).[7] Aquele que seria conhecido como “Pai da Didática Moderna”, teve uma vida difícil: órfão aos 12 anos (1604), foi acolhido por uma tia paterna. Nesse período pôde estudar na escola dos Irmãos Unidos (1604-1605). Somente aos 16 anos (1608) é que entrou para a escola latina de Prerau. Em 1611 ingressou na Universidade de Herborn e em 1613 foi admitido na Universidade de Heidelberg (Alemanha), onde estudou teologia. Em 26 de abril de 1616 é ordenado pastor. Desde 1618 exerce o pastorado na cidade de Fulnek, na Morávia. No entanto, com a invasão da Boêmia e de sua cidade, que é saqueada e queimada, Comênio é proscrito em 1621, perde sua biblioteca e manuscritos e, o pior: sua mulher, grávida, e seus dois filhos, morrem vitimados pela peste. Ele passou a ter uma vida errante pela Europa. No entanto, apesar de suas tribulações, Comênio pôde produzir uma obra vastíssima ligada especialmente à educação (mais de 140 tratados), sendo o seu principal trabalho – que resume bem a sua obra –, a Didática Magna(escrita em 1632 e publicada em latim em 1657). O método audiovisual encontrou a sua origem em Comênio, também chamado de o “evangelista da moderna pedagogia”.[8] Ele foi o último bispo da Igreja dos Irmãos Boêmios (1632).

Comênio foi o filósofo da educação e o educador mais notável do século 17 e um dos mais importantes de toda a História, tendo a sua obra exercido grande influência durante a sua vida e especialmente nos séculos posteriores, sendo um dos incentivadores da Escola Pública. Há evidências de que ele teria sido convidado por John Winthrop Jr. (1606-1676) a presidir o Harvard College (1642), cargo que de fato nunca ocupou. Na realidade, Comênio recebeu ao longo da vida diversos convites, os quais não pôde atender, como o do Cardeal Richelieu da França, da cidade de Hamburgo e de alguns nobres poloneses. Em 1641 Comênio atendeu o convite de Luís de Gerr que, em nome do rei Gustavo Adolfo da Suécia, solicitou-lhe ajuda para reformar o sistema de escola nacional sueco. Em 1656 ele foi, à convite, viver na Holanda, onde passou o resto de seus dias. Morreu em 15 de novembro de 1670. O filósofo luterano G.W. Leibniz (1646-1716), então com 24 anos, dedicou-lhe os seguintes versos: “Tempo virá em que a multidão dos homens de bem te honrará e honrará não somente tuas obras, mas também tuas esperanças e teus votos”.

Conclusão

A forte ênfase que as Escrituras dão ao seu ensino e o lugar de destaque que essa empreitada deveria receber nos lares de Israel, bem como na própria vida nacional do povo escolhido, acompanharão toda a história da igreja, lembrando o povo de Deus de que os termos da Aliança não podem ser esquecidos, ao contrário, devem ser ensinados aos pequeninos e lembrados a todos de todas as idades.
Então, como povo de Deus e, particularmente, como herdeiros da Reforma, carecemos dessa ênfase. E, num país com as raízes que tem o nosso, onde a educação não foi privilegiada desde o começo por não haver uma preocupação com o estudo da Palavra de Deus, essa ênfase haverá de gerar – e é preciso que assim seja – uma preocupação em promover ainda mais a educação. Não basta que sejamos menos iletrados do que o restante da população – como de fato somos. É preciso lutar, como fizeram Calvino, Knox, Comênio, e tantos outros, para promover a educação de todos com base na verdade.
Será a nossa contribuição para reformar não apenas o Cristianismo no Brasil, mas o próprio país e, acima de tudo, será a nossa contribuição para que Deus seja glorificado.
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[1] Ver: Revista Expressão, tema do trimestre: Cidadania Cristã: uma perspectiva reformada, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1º tri. 2002, lição nº 3.




[4] Planejamento da Educação: Um Levantamento Mundial de Problemas e Prospectivas, Conferências Promovidas pela Unesco, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1975, p. 4.


[6]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2000, p. 192; André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 39.

[7] Cito como curiosidade, que mais tarde, o Regente Feijó tentará trazer os Irmãos Morávios ao Brasil (1836), com o objetivo de trabalhar na catequese dos índios. Contudo, lamentavelmente eles estavam “impossibilitados de atender” o convite. (Ver: Daniel P. Kidder,Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo), São Paulo, Martins Fontes, (1951), Vol. I, p. 41).

[8] Título da obra de Will S. Monroe, publicada em Boston (1892):Comenius, the evangelist of modern pedagogy.
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Fonte: Ultimato

24 de jun. de 2016

O que Calvino realmente disse sobre o Quarto Mandamento?

Por Dr. Francis Nigel Lee

João Calvino de Genebra (1509-1564) desferiu o golpe de morte para os dias de festa dos romanistas e deu grande ímpeto ao Decálogo e à observância do domingo. Muito uso tem sido feito pelos antinomistas anabatistas a respeito das cuidadosas afirmações de Calvino em suas Institutas de 1536 de que “foi bom deixar de lado o dia guardado pelos judeus” – mas pouco uso tem sido feito das afirmações igualmente cuidadosas que aparecem duas linhas depois na mesma sentença, de que “foi necessário estabelecer em seu lugar outro dia”.[i] Antinomistas têm enfatizado a afirmação verdadeira de Calvino contra os romanistas de que guardadores ferrenhos do domingo “insultam os judeus pela mudança do dia, e ainda atribuem a ele a mesma santidade” – mas ignoram sua afirmação, igualmente verdadeira (aparentemente contra os antinomistas!) que aparece seis linhas depois: “Tenhamos o cuidado, entretanto, de observar a doutrina geral... diligentemente comparecendo às nossas assembleias religiosas”.[ii]

Anti-calvinistas desprezadores da lei não falharam em apreender a opinião correta do genebrino quando disse que “o sábado tenha sido revogado” – mas falharam em apreender com igual correção a opinião apresentada na seção seguinte, de que “algumas mentes levianas se agitam demais hoje em dia por causa do domingo. Queixam-se de que o povo cristão continua preso a um tipo de judaísmo, visto que ainda retém alguma observância de dias. A isso respondo que sem judaísmo observamos o domingo”.[iii] Essas “mentes levianas” não se furtam de citar fortes afirmações de Calvino de que “Cristo é o verdadeiro cumprimento do sábado” e que ele “não está contente com um dia, mas exige o curso inteiro de nossa vida” etc. – mas se furtam de afirmações igualmente fortes de que Deuteronômio 5 é “igualmente aplicável a nós como aos judeus” e que nos tempos apostólicos “os primeiros cristãos substituíram o sábado por aquilo que nós chamamos de Dia do Senhor”![iv]

Contudo, talvez ainda mais importante do que suas visões nas Institutas de 1536 – escritas em seus tenros 26 anos de idade – são as afirmações posteriores de Calvino sobre a questão do sábado, sobre as quais os antinomistas mantêm o mais profundo silêncio. Em seu sermão em Deuteronômio 5, ele escreveu sobre “quando as janelas das nossas lojas estão fechadas no dia do Senhor, quando não andamos segundo a ordem comum e o costume dos homens”. Ele pergunta: “Se empregamos o Dia do Senhor para nos distrair, para nos exercitar, para ir a jogos e passatempos, Deus está sendo nisto honrado? Não é isto uma zombaria? Não é uma profanação de seu nome?”[v]

Em 1550, de acordo com Beza, seu biógrafo, Calvino determinou “que não deveria haver qualquer outro dia de festa, exceto um em sete, que nós chamamos de Dia do Senhor”[vi]; e no ano de 1554, ele escreveu em seu Comentário de Gênesis (2.1-3) que Deus “primeiro descansou, então abençoou este descanso que em todas as eras deveria ser sagrado entre os homens”. “Deus”, continuou Calvino, “consagrou cada um dos sétimos dias de descanso” e que, “sendo ele [o shabbath] ordenado aos homens desde o princípio, para que o empreguem na adoração a Deus, é certo que deve continuar até ao fim do mundo”. Além disso, conclui, “deve-se notar que essa instituição tem sido dada não a um único século ou povo, mas a toda a raça humana”.[vii]

Um ano antes de sua morte em 1564, Calvino claramente afirmou com respeito a Êxodo 20, em sua obra Harmonia do Pentateuco, que “temos a mesma necessidade de um dia de descanso que os antigos”; e acrescentou: “não é crível que a observância do dia de descanso tenha sido omitida quando Deus revelou o rito de sacrifício aos santos Pais, mas aquilo que na depravação da natureza humana estava completamente extinta entre as nações pagãs, e quase obsoleta entre a geração de Abraão, Deus renovou em sua lei”.[viii]

Essas visões do grande genebrino foram propagadas e desenvolvidas por todos os seus seguidores que orgulhosamente chamavam-se por seu nome – os calvinistas.

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Fonte original: The Covenantal Sabbath[ix]

Extraído de: Monergismo.Net.Br

Tradução: Márcio Santana Sobrinho 


[i] Calvino. “Institutas”, II:VIII:33.
[ii] Ibid., II:VIII:34.
[iii] Ibid., II:VIII:32,33.
[iv] Ibid., II:VIII:32,34.
[v] A. A. Hodge. op. cit., pp. 18-19.
[vi] Bezaop. cit., I, p. xciii.
[vii] A. A. Hodge. op. cit., pp. 17:8; Kuyper. “Tractaat” etc., pp. 165-166.
[viii] Calvino. “Harmony of the Pentateuch”, p. 437.

22 de jan. de 2016

Calvino e as Relações de Trabalho

Por André Biéler

A ética calvinista do trabalho.

Como toda ética do reformador, a ética do trabalho baseira-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais. É uma ética teológica, que pode confirmar, mas não necessariamente, a ética natural, de uma humanidade atualmente desnaturada. A ética evangélica destina-se a servir de referência aos seres humanos para ajudá-los a discernir o bem do mal, porque bem e mal lhes são igualmente naturais, um como o outro.

A dignidade do trabalho humano, quando em conformidade com o desígnio de Deus, atém-se ao fato de que é, de certa forma, o prolongamento do trabalho que o próprio Deus empreende para a manutenção de suas criaturas. É a resposta à vocação que este Deus lhes dirige para que elas se utilizem das riquezas da criação, postas por ele, gratuitamente, à disposição delas. A despeito dessa eminente dignidade, a obra humana permanece, porém, obra profana. Não poderia aspirar à sua sagração. Quem a executa assume toda a responsabilidade perante Deus e perante os homens.

Todavia, por causa de sua natureza desnaturada, o homem despreocupa-se da glória de Deus e, por conseguinte, do bem de seu próximo. Crê poder dispor de seu trabalho como bem lhe parece, de forma autônoma e egoísta. Pode mesmo fazer dele seu Deus. E pensa, naturalmente, que pode dispor igualmente, como bem lhe apraz, do trabalho alheio e, particularmente, dos frutos do trabalho daqueles que por ele são remunerados. Assim, desligado da ordem de Deus que lhe confere seu sentido e sua dignidade, esse trabalho pode transformar-se em servidão, maldição, e tornar-se, para si mesmo e para os outros, fonte de sofrimentos e lágrimas. Degrada-se o ponto de não ser considerado mais que simples mercadoria, como o destacarão os economistas do século XIX.

O que se faz mister, portanto, para que o trabalho recupere seu sentido original? Urge que seja novamente considerado como serviço e reconhecido como tal, com sua dignidade. E para tanto, faz-se preciso que o homem restaure sua situação perante Deus. Faz-se necessário que se associe de novo, pessoalmente, à obra espiritual que Deus persegue incansavelmente no mundo, para o bem de todas as suas criaturas. E é preciso que associe igualmente a essa obra divina seu próprio trabalho e o dos outros.

Paradoxalmente, para isso acontecer, o homem deve parar momentaneamente de trabalhar, a fim de readquirir nova comunhão com Deus. É necessário que silencie diante dele, para escutá-lo. Esse é o significado do Deus (Gênesis, c. 20). É o dia da santificação, a saber, da marcha espiritual, pela qual cada indivíduo é convidado a reencontrar sua verdadeira identidade de criatura de Deus, motivada e estimulada por seu amor.

Assim, o repouso humano não possui valor em si mesmo. Se proporciona ao trabalhador um descanso físico e psicológico desejado, necessário, isso é uma feliz consequência, mas um efeito secundário. Não é o reencontrar-se com Deus, com a comunidade dos crentes, retornar às fontes e reencontrar, assim, o sentido da sua vida inteira, e particularmente de seu trabalho. “Os fiéis”, escreve Calvino, “devem repousar de seus próprios trabalhos, a fim de permitir que Deus opere neles.” E “agir é, pois, aderir em todas as coisas à ação de Deus”.

Ora, essa tomada de posição do homem diante de Deus só é possível pela mediação de Cristo. Para que reconquiste o justo sentido de sua existência e de seu trabalho, o homem deve entrar na comunhão com Deus pelo caminho que lhe abre Cristo. É necessário, pois, passar pelo arrependimento e deixar-se santificar, restaurar, pelo espírito de Deus. E essa santificação opera-se na comunidade dos fiéis, na comunhão com aqueles que buscam em conjunto a renovação da sua existência. Assim, somente dessa forma o trabalho cotidiano pode readquirir seu significado e reencontrar sua qualificação. Só desse modo pode tornar a ser uma obra em conformidade com o desígnio de Deus e restabelecer entre os homens relações sociais justas. Eis porque o mandamento bíblico da santificação do dia do repouso faz menção às relações do trabalho, ao relacionamento entre senhores e súditos, isto é, em termos modernos, entre patrões e operários, entre empregadores e empregados, entre os que fornecem o capital da empresa e os que executam o trabalho. A espiritualidade cristã, quando autêntica, não é, pois, fuga da interioridade. É contemplação do agir de Deus, que quer ser, claramente, o árbitro das relações humanas no trabalho, na cidade e, também, nas trocas comerciais e financeiras. Aliás, como também em todos os demais domínios da vida. (Mas estes não constituem objetos das reflexões desta obra.)

Pode-se, por isso, dizer, com toda justiça, que Calvino conferiu ao trabalho sua dignidade. Mas, é um equívoco censurá-lo por haver instituído a religião do trabalho. Se protestantes, ou mesmo sociedades de origem calvinista, vieram a ceder a essa extravagância, como se pode constatar por vezes (examinar-se-á esse assunto), é porque adotaram ideologias profanas que, como o liberalismo integral ou o marxismo, consideram o trabalho sem levar em conta o sentido que Deus lhe empresta. Fazem dele um valor em si, autônomo, apartado de suas raízes espirituais e da ética que delas deriva, detentoras de seu verdadeiro significado. Acrescentamos que esse sentido do trabalho não é estático, mas dinâmico. A vocação de Deus não enclausura o cristão em atividade imutável. Ao contrário, é apelo para enfrentar, de maneira flexível, as situações novas. Porque Deus, que convoca o homem ao trabalho, age sempre no contexto de uma história concreta e evolutiva, que obriga cada indivíduo a adaptar-se às circunstâncias.

A ociosidade, o desemprego e os lucros abusivos.

Já que o trabalho, sob a ótica calvinista, é obra pela qual o homem se realiza correspondendo à vocação que Deus lhe dirige, a ociosidade é vício que corrompe a humanidade. O repúdio ao trabalho, assim como a preguiça, significa para o homem a negativa de corresponder à expectativa de Deus, uma forma de ruptura com ele. “A bênção do Senhor”, escreve Calvino, “está nas mãos daquele que trabalha. É certo que a preguiça e a ociosidade são malditas por Deus.”

É por isso que Calvino denuncia a culpa dos que obtêm suas posses do trabalho alheio, sem proporcionar à comunidade trabalho pessoal, serviço real (remunerado ou não). Descreve esses “ociosos e inúteis que vivem do suor alheio e, portanto, não prestam contribuição alguma para ajudar o gênero humano”.

Eis nos novamente bem distantes tanto dos usos da sociedade feudal anterior à Reforma quanto dos que prevaleceram em seguida nas sociedades onde floresceu o capitalismo primitivo ou selvagem. Que nessas sociedades alguns trabalham demasiadamente, enquanto outros são conduzidos ao repouso forçado, eis um indício grave do esquecimento da ética cristã ou do desprezo por ela. É por isso que, pelas mesmas razões teológicas relacionadas com o valor do trabalho, o desemprego não pode ser tolerado, nem admitido, como uma fatalidade do ponto de vista desta ética. Já que o trabalho é essa obra indispensável, pela qual o homem se realiza na obediência a Deus, o desemprego é uma calamidade social que deve ser combatida com o máximo vigor. Privar o homem do seu trabalho é verdadeiro crime. É, de certa forma, subtrair-lhe um pouco a vida. “Se bem que recebamos nosso alimento da mão de Deus”, escreve Calvino, “ele nos ordenou trabalhar, O trabalho é eliminado? Então a vida humana é aviltada.” “Sabemos que toda a renda de todos os artesãos e operários decorre de poder ganhar a vida…”. “Então, já que Deus lhes depositou assim a vida em suas mãos, isto é, no seu trabalho, privá-los dos bens necessários é como degolá-los.”

A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em benefícios de suas vítimas.

Tal ética estava na origem das múltiplas intervenções de Calvino e de seus colegas na luta contra esse flagelo. Para eles não estava em discussão abandonar-se à filosofia do “laisser-faire”, que prevaleceu mais tarde na ideologia profana do liberalismo integral e dos economistas sem imaginação. Preconizavam a intervenção moderadora do legislador para melhor distribuição de bens em função da conjuntura. Não imaginavam, tampouco, que o Estado devesse assumir a função econômica: isso equivaleria a subtrair aos indivíduos suas responsabilidades e iniciativas, inerentes à sua vocação, preocupada com o próprio trabalho e com o alheio. E a ociosidade, que a ética cristã combate, não pode ser encorajada, também, por uma lassidão social tolerante demais para com os preguiçosos.

Sempre em função de seu significado espiritual e ético, o trabalho de cada indivíduo deve ser respeitado e não é lícito dele retirar lucro abusivo. “Deus nos ensina”, escreve ainda Calvino, “que nos cabe tratar com tal humanidade os que cultivam a terra para nós, que eles não sejam onerados imoderadamente, mas possam prosseguir no seu trabalho e nele tenham oportunidade de dar graças a Deus.” Deus quer “corrigir a crueldade que existe nos ricos, os quais empregam pessoas pobres, mas não as recompensam pelo seu trabalho”.

Então, se a liberdade é indispensável ao exercício da vocação para o trabalho, que Deus dirige a toda pessoa humana, essa liberdade não pode ser considerada isoladamente, independente da busca de justa solidariedade entre os parceiros sociais, todos os atores da economia.

Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíram para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego.

O conceito reformado do salário.

É sempre a partir de considerações teológicas particulares que Calvino define uma ética concreta. E assim é, mais notadamente ainda, a propósito do salário.
    
O salário humano retira seu significado de uma analogia com a recompensa que Deus concede ao homem por suas obras. De fato, ela depende unicamente de seu amor. Tudo o que recebe um ser humano é devido à graça de Deus. É ele que provê gratuitamente a sustentação da vida, por pura misericórdia. “Falando com propriedade”, escreve Calvino, “Deus nada deve a ninguém.” “Qualquer obrigação de que nos desincubamos, Deus não está absolutamente obrigado a pagar-nos salário algum.”

Na sua bondade, porém, Deus não abandona suas criaturas sem lhes dar o que lhes é necessário para viver. Remunera suas obras, não por obrigação, mas por amor. “Por sua bondade gratuita, oferece-nos salário”, escreve ainda o reformador, “aluga nosso trabalho, o qual lhe é devido mesmo sem a remuneração.”
    
O salário humano concedido a todo o trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito e imerecido com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor, que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe aprouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo a que este tem direito da parte de Deus.

Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum ator econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.

Contra a exploração dos trabalhadores.

Por certo Calvino não ignora as regras do mercado. Mas, precisamente estas, não podem ser as únicas que devem ser levadas em conta. Devem ser complementadas e corrigidas de acordo com essas referências espirituais e éticas. Impõe-se especialmente levar em consideração as necessidades e a dignidade de todos os parceiros. É que a avidez ameaça sempre perverter as relações sociais, particularmente quando a conjuntura é adversa para os trabalhadores mais fracos.
    
“Eis como muitas vezes procedem os ricos”, escreve Calvino. “Espreitam as ocasiões favoráveis para reduzir à metade os salários dos pobres, quando estes não têm onde empregar-se. Estes estão desprovidos de tudo, dirá o rico, tê-los-ei por um pedaço de pão, porque precisam, embora contra a vontade, se renderem a mim. Dar-lhes-ei meio salário e têm de contentar-se. Quando, pois, usamos de tal maldade, conquanto não tenhamos negado salário, há sempre crueldade, e lesamos um pobre.”
   
Destarte, em matéria de remuneração, o que é justo sob o aspecto da ética está, muitas vezes distante do que é a norma no mundo econômico.
   
Sem que, nem por isso, recomende a revolução dos assalariados explorados, o reformador constata que Deus está atento às reclamações dos trabalhadores espoliados: ele não se esquece dos empregadores que abusam deles. De fato, “com que maior violência se pode deparar”, escreve, “do que fazer morrer de fome e de miséria os que nos fornecem o pão com o seu trabalho? E, apesar disso, essa maldade tão absurda é muito comum. É que existem muitas pessoas que possuem temperamento tirânico e pensam que a humanidade foi feita somente para eles. São Tiago afirma que o salário grita, porque tudo o que os homens retêm em seu poder, ou por fraude, ou por violência ou força, clama vingança aos gritos. Faz-se imperioso observar o que acrescenta: o grito dos pobres chega até os ouvidos de Deus, a fim de que saibamos que as maldades, que lhes são feitas, não ficarão impunes”.

Ainda nessa matéria, Calvino interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Àquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. Os assalariados menos aquinhoados, o proletariado, entraram em agitação. Em 1559, o Conselho, para prevenir qualquer rebelião, proibiu a reunião de trabalhadores, suprimindo seu direito a associação. Advieram perturbações sociais, entre os gráficos principalmente. Sob a iniciativa dos pastores, o Conselho, de comum acordo com os representantes da profissão, tomou medidas para regulamentar a atividade gráfica. Graças a essa intervenção e à ponderação dos interessados, Genebra evitou as greves que perturbaram Lion e Paris naqueles tempos. Essa paz social, obtida mediante a negociação entre todas as partes, contribuiu para a recuperação da economia de Genebra e para seu desenvolvimento rápido em comparação com as economias vizinhas.

Legitimidade do comércio, das trocas e da divisão do trabalho.

Enquanto a sociedade medieval menosprezava o comércio, o Cristianismo reformado o reabilitou inspirando-se, uma vez mais, no ensinamento bíblico. Já que Deus convocava cada indivíduo para uma missão particular, explica Calvino, torna-o dessa forma dependente do trabalho e dos serviços alheios. Assim, pois, cada indivíduo tem necessidade de usufruir das outras atividades humanas. Certa divisão do trabalho está, portanto, em conformidade com o desígnio de Deus. Ela manifesta a interdependência de suas criaturas e acentua a utilidade dos vínculos que a atividade econômica tece na sociedade. Cada indivíduo é dependente dos outros. Desse modo expressa-se a solidariedade que liga os homens entre si. E tal solidariedade implica troca permanente entre os indivíduos, reciprocidade de serviços. O comércio, por consequência, é o corolário da vocação individual para um trabalho particular. As trocas são por conseguinte indispensáveis para que se realize a ordem social harmoniosa que Deus quer ver reinar entre os homens. Nenhum deles pode bastar-se.

É pouco provável, porém, que Calvino tenha aplicado essas observações, tais quais foram feitas, à divisão industrial do trabalho que não conheceu, levada ao exagero, como o foi, a partir do século XIX. É que tal divisão, que reduziu o homem a simples máquina, destruiu a própria natureza do trabalho criador, individual, resposta a uma vocação personalizada.

Como todas as outras atividades humanas, as trocas somente são úteis se estão em conformidade com a vontade de Deus, à ética cristã. Mas o homem desnaturado inclina-se a falsear esse tipo de relações econômicas. A fraude e a desonestidade insinuam-se nas trocas e desnaturam-nas. “Quando não mais se pode comprar nem vender”, diz Calvino, “a companhia dos homens é como que destruída.”

Ora, os autores de tal subversão são acima de tudo os especuladores e os açambarcadores, já numerosos no século XVI, que, por todos meios artificiais, entravam a circulação dos bens e dos produtos, causando-lhes a raridade e aumentando destarte os lucros.
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Fonte: A Força Oculta dos Protestantes. Ed. Cultura Cristã. P. 124-131.