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4 de abr. de 2016

Cosmovisão Sob Perspectiva - Criacional, Redentora e Escatológica

Por Thomas Magnum[i]


O passo mais importante para o cristão é tornar-se informado sobre a cosmovisão cristã, uma visão abrangente e sistemática da vida e do mundo como um todo. Nenhum crente hoje pode ser realmente eficaz na arena das ideias até que tenha sido treinado a pensar em termos de cosmovisão. (Ronald Nash)


Não raro, a aplicação do estudo teológico as mais variadas esferas da vida humana se limitam a comunidade cristã local e a seu calendário de programações semestrais ou anuais; com conferências, congressos, simpósios etc. Não sou contra essas programações, pelo contrário participo tanto ouvindo, como falando em eventos assim e acho benéfico, mas, o problema é que esse tipo de reflexão não pode se limitar a períodos programados.

 Ao pedir que cristãos leigos ou mesmo seminaristas apliquem o estudo teológico de forma contextual a sociedade, arte, música, família, relacionamentos, atividade profissional e atividades intelectuais ou acadêmicas deve-se saber que esbarraremos em grandes muralhas que precisam ser transpostas. A aplicação da teologia na vida prática muitas vezes é um grande dilema para muitos cristãos. Como ser um profissional para glória de Deus ou como ser um pai ou mãe par glória de Deus? Ou mesmo, como ser um pintor ou escultor ou poeta para glória de Deus? Por vivermos num contexto secularizado e como dizia Francis Schaeffer pós-cristão, temos dificuldades enormes para equiparar nossa vida de forma integral com o ensino do cristianismo. Ao falarmos da visão teológica é necessário que esclareçamos alguns pontos importantes. Todo homem possui a semen religionis (semente da religião), todo homem ou mulher tem afeições religiosas, sejam essas direcionadas corretamente ao Deus da Bíblia ou a um deus criado pela imaginação humana.

Ao tratarmos de culto e cultura estaremos em campos paralelos, à prática cultural é identificável pela prática religiosa de indivíduos, grupos sociais, cidades, países ou num contexto mundial. A visão teológica está presente em todos os contextos culturais, o missiólogo e antropólogo Ronaldo Lidório nos diz que

Observar a cultura como ela é (a partir de uma observação êmica) e estudá-la à luz de um processo bíblico (observação teológica) é um exercício válido para todos os que lidam com a exposição e a vivência do evangelho com outras culturas, a fim de entender bem como aquele valor bíblico está de fato sendo compreendido e aplicado pelo grupo receptor [ii].

A observação pelo espetro sócio-cultural como diz Lidório em seu livro Comunicação e Cultura não pode ser apenas pelos primas ético e êmico, a partir de meus valores culturais e a partir somente dos valores culturais do outro, daquele que será receptor da mensagem do evangelho, mas sim, por uma observação êmico-teológica num contexto missiológico. A cultura também é beneficiada pela graça comum de Deus em muitos aspectos, no nosso caso no Ocidente temos uma forte influência da moral cristã. O pensamento social e político em muitas esferas nacionais são fruto da cristandade. No entanto há uma dificuldade de empregabilidade dos ensinos cristãos a uma prática ética, esta prática não tem compromisso com a Escritura Sagrada. Quando um contabilista é tentado a realizar manobras ou transações que chocam com o ensino cristão? O que fazer? É evidente que a resposta a essa pergunta é a mesma para toda a ética ensinada pelo cristianismo que são fruto da lei de Deus, não furtarás. 

A Bíblia é a lente pela qual devemos ler o mundo. O cristianismo é a única forma correta de ler a sociedade em todas as suas camadas – famíliar, política, educacional, artística, relacional. Nosso grande desafio de fato é uma visão teológica teoreferente. No desenvolvimento do pensamento cristão a cristandade foi tentada a mudar sua referência teológica de Deus para uma referência antropocêntrica, houve uma convergência para o homem, centralizando a criatura. 

Precisamos ter uma visão teoreferente, Deus como referencial não só para a vida em comunidade de fé, mas, nosso papel na sociedade, na academia, na vizinhança, na família. Essa visão será fruto inicialmente de uma correta apreensão da criação descrita nas Escrituras Sagradas.

A doutrina da criação é de grande importância para uma cosmovisão teoreferente, se não houver uma correta abordagem da origem do mundo e do homem não se obterá uma completa e correta concepção do propósito para o qual o homem fora criado, para o qual o mundo fora criado. A criação ex nihilo é nosso ponto de partida para uma cosmovisão cristã bíblico-teológica tendo Deus como o ponto central de sua gênese ao seu sentido último. Franklin Ferreira nos diz que

Esse Deus criou por seu poder todas as coisas do nada, e, originalmente, toda a criação era boa. Essa noção da criação do nada é importantíssima para a fé cristã. A expressão latina é ex nihilo. Deus não precisou de nada preexistente para criar. O Deus Eterno cria tudo do nada, sem precisar de nenhuma ajuda. Portanto, não havia nenhuma matéria prévia ao lado de Deus na criação. Deus cria a matéria. Aliás, Deus cria o próprio tempo. Deus cria a história. Tudo foi criado por Ele. Deus criou toda a criação muito boa. Gênesis 1.1-31 afirma esta verdade seis vezes. Deus cria e diz: “É bom” (Gn 1.10,12,18,21,25,31). Deus cria, e é bom. E no final do relato bíblico, Deus cria e diz: “Muito bom”. E Deus cria todas as coisas para que estas anunciem sua glória, amor e bondade [iii].

Deus não precisava criar, afinal, Deus não precisa de nada, se precisasse não era Deus. Ele decidiu criar em um ato de soberania e sabedoria divina e o propósito dessa criação é sua glória. Deus criou do nada, seu eterno poder criou de forma boa, sua criação segue seu propósito, seu decreto estabelece a história da humanidade, sua providência guia o mundo a encarnação do seu eterno propósito, trazendo a cabo o que foi estabelecido por seu decreto eterno.

O estudo dos decretos leva naturalmente à consideração da sua execução, e esta começa com a obra da criação. É a primeira, não somente em ordem cronológica, mas, também como prioridade lógica. É o começo e a base de toda revelação divina e, consequentemente, é também o fundamento de toda vida ética e religiosa. A doutrina da criação não é exposta na Escritura como uma solução filosófica do problema do mundo, mas, sim, em seu significado ético e religioso, como uma revelação da relação do homem com seu Deus. Ela salienta o fato de Deus é a origem de todas as coisas, e de que todas as coisas Lhe pertencem e Lhe estão sujeitas. O conhecimento desta doutrina só se obtém da Escritura e se aceita pela fé (Hb 11.3)[iv].

Fica entendido que por nossa perspectiva teológica é incoerente interpretar a criação e seu propósito sem o decreto de Deus. Como nos disse Berkhof : o estudo dos decretos nos levam à consideração lógica da sua execução. Sem essa compreensão a partir do decreto de Deus na criação toda ordem do mundo é adulterada, somente através do que diz a Bíblia sobre o mundo e a finalidade de sua existência podemos ter um verdadeiro entendimento da criação e sua ordem missional [v]. Como dito anteriormente essa adoração do universo e toda a criação de Deus lhe é prestada como finalidade, o telos. Deus, sendo Deus não precisa de nada nem de ninguém como Hodge afirma:

[...] À luz da auto-suficiência absoluta de Deus, deduz-se que a criação não foi designada para suprir ou satisfazer qualquer necessidade de sua parte. Ele não é mais perfeito ou mais feliz por haver criado o mundo. Além disso, deduz-se da natureza de um ser infinito que a razão (ou seja, tanto o motivo quanto o fim) da criação deve estar  nele mesmo. Como todas as coisas são dele e por meio dele, assim também são para ele[vi].

O fato da criação não alterar em nada o caráter de Deus nos é um tema caro na teologia sistemática, Deus não se tornou criador, mas é o eterno criador. Deus é imutável e antes do tempo existir Deus era Deus, auto-suficiente, o Eu Sou o que Sou. Essa independência de Deus e sua suficiência nele mesmo o eleva a um Ser necessário para explicar o sentido da criação. Nos diz Bavinck que

[...] Deus é o Eterno: nele não há passado nem futuro, nem transformação e nem mudança. Tudo o que ele é, é eterno: seu pensamento, sua vontade, seu decreto. Eterna nele é a ideia do mundo, que ele pensa e expressa no Filho; eterna nele também é a decisão de criar o mundo; eterna nele é a vontade de que o mundo seja criado no tempo; eterno nele também é o ato de  criar  como um ato de Deus, uma ação tanto interna quanto imanente. Deus não se tornou Criador, de modo que, primeiro , por um longo tempo, ele não criou e depois criou. Em vez disso ele é o Criador Eterno, e, como Criador, ele era o Eterno, e como o Eterno, ele criou [vii].

A observação por meio sociocultural não é suficiente para uma conceituação antropológica.

O estudo teológico não tem por obrigação somente a instrução dos cristãos no âmbito devocional e eclesiástico. Toda construção teológica desembocará em resultados práticos na vida de um receptor, daquele que for recipiente do discurso dogmático. A teologia não serve como um depósito de debates infindáveis e sem utilidade (embora tenha sido assim em muitos casos), a teologia deve atender e responder questões ligadas a Deus, a sua igreja, ao homem como ser criado e onde ele está inserido – a sociedade – a teologia versa ou dialoga com todas as áreas do conhecimento, sobrepujando-as, a teologia é por assim dizer superior a todos os campos de conhecimento, por ter como objeto de estudo a revelação escrita de Deus. Com isso não estou invalidando a importância dos variados campos do saber, pelo contrário, Deus tem dois “livros” que o revelam, a revelação geral e a especial/histórico-redentiva. As duas, com distinta importância, mas, a última como superior a primeira conforme nos mostra o Salmo 19. 

A teologia reformada tem sido um baluarte desde a reforma protestante. Lutero, Calvino e os demais reformadores foram pensadores sociais também, sua teologia era missional, encarnacional, aplicada a realidade de sua época de forma que o Evangelho responde questões referentes ao homem e seu habitat. Toda construção da antropologia social irá versar sobre questões contingentes e não contingentes em relação à vivência humana ou a seus aspectos observacionais, psicológicos. Conquanto muitas vezes ou a maioria delas, essas observações são tomadas como axiomáticas de forma que tais observações acabam ser tornando “canônicas” na determinação de quem é o homem, o que ele faz aqui, qual é sua função no âmbito social e qual é o propósito de sua vida. Toda essa construção tem um viés ideológico e espiritual, tudo que promove exame da persona irá atrelar-se ou pelo menos tentar ligar-se a realidade, o problema é que a realidade acerca do que é o homem e seu propósito escatológico somente pode ser determinado por uma conceituação fora do homem. A forma de saber quem é o homem e porque ele está aqui é algo espiritual, nem o epicurismo, nem o marxismo, nem o freudismo, nem o psicologismo, nem o sexismo, nem o feminismo, nem socioconstrutivismo tem condições de determinar o que é o homem, a antropologia através de suas investigações observacionais pode até eximir algum raio de luz em relação ao que é o homem, mas, não pode de forma observacional apenas, dizer o que é o homem. O ser humano não pode ser apenas observado eticamente [viii], nem êmicamente [ix], mas, de forma que seja observado por um prisma maior e eficaz, em que a ética e a observação êmica serão julgados por um exame êmico-teológico.

Um arcabouço doutrinário/teológico frouxo nunca poderá produzir um pensamento social e político coerente com o Ser de Deus revelado nas Escrituras. Uma teologia que mina a soberania de Deus e a vileza e o estado caído do homem e sua total inabilidade para alcançar a Deus, produzirá um sistema de pensamento contrário ao cristianismo bíblico. Toda teologia que defende a autonomia da razão humana será um pressuposto para sistemas políticos totalitários, opressores, ímpios, e promotora de atitudes contrárias a uma ética que sobrepuje a construção ideológica.

Sem uma correta abordagem teológica viabilizada pela dogmática cristã não podemos construir ou descobrir qual é o modelo correto de sociedade, política, abordagens artísticas, métodos educacionais, crescimento dos campos do saber. A teologia irá nos mostrar através de suas abordagens do dogma cristão, como Deus deseja que sua criação funcione. É entendível que não há na Bíblia uma fórmula sagrada para a composição de sinfonias, ou uma determinação musical sagrada para a utilização de determinados compassos, ou para uma sacramentalização de determinados instrumentos musicais. Como não há uma fórmula bíblica para técnicas de artes plásticas, ou uma aprovação teológica ao impressionismo ou expressionismo quanto escolas de arte, não há uma ordenança bíblica para se tomar o cubismo ou dadaísmo como escolas de arte cristãs ou mesmo o surrealismo como algo fundamental para a cristandade. O que teremos nas Escrituras é o estabelecimento de uma cosmovisão criacional e redentora. A partir da criação e dos mandatos estabelecidos em Gênesis 1.26-30 temos todo um fundamento para a visão cristã de mundo que será desenvolvido e aplicado em todas as Escrituras.

Podemos concluir  que a cosmovisão cristã é fundamentalmente criacional e redentora. O motivo básico cristão de criação –  queda – redenção é muito importante para uma correta leitura teológica que estabelecerá a ponte para percepções cristãs de mundo. Essa percepção cristã do mundo se exalta sobre toda e qualquer cosmovisão concorrente. Como nos diz Ronald Nash:

Óculos corretos são capazes de por o mundo em foco mais claro - e a cosmovisão correta pode funcionar de um modo muito parecido. Quando alguém olha o mundo pela perspectiva da cosmovisão errada, o mundo não faz muito sentido. Ou o que a pessoa pensa fazer sentido estará, na verdade, errado em aspectos importantes. Aplicar o esquema conceitual correto, isto é, ver o mundo através da cosmovisão correta, pode ter repercussões importantes para o resto da compreensão da pessoa de acontecimentos e ideias [x].

Com essa afirmação de Nash podemos dizer que em grande medida cosmovisões não cristãs tem sua dose de niilismo. Não há propósito último. Numa cosmovisão cristã que se desenvolve a partir de uma abordagem criacional temos claramente uma ordem básica de entendimento em arche, ethos e escathon. Existe um criador de todas as coisas e esse criador estabeleceu leis para o funcionamento de todas as coisas e para suas criaturas, essas leis sejam elas as leis naturais que estarão ligadas ao uma abordagem da teologia natural ou leis preceituais ligadas a revelação especial de Deus, uma teologia redentiva, uma revelação que leva a humanidade a salvação. Essa revelação está em Jesus Cristo encarnado, verbo de Deus e nas Sagradas Escrituras. Com isso estabelecido é evidente que todo esse plano criacional tem um fim, um escathon. Aqui está a importância da progrecividade e organicidade da revelação de Deus aos homens, a Bíblia, a teologia da revelação é crescente e progressivamente dirigida ao clímax da história da redenção de toda criação, essa redenção final contempla tanto os homens como o mundo criado, a restauração de todas as coisas cumpre o escathon de Deus. Sem uma cosmovisão criacional e redentora não chegaremos a uma compreensão escatológica do plano divino.

O passo mais importante para os cristãos é tornar-se informado sobre a cosmovisão cristã, uma visão abrangente e sistemática da vida e do mundo como um todo. Nenhum crente hoje pode ser realmente eficaz na arena das ideias até que tenha sido treinado a pensar em termos de cosmovisão [xi].

Ronald Nash mais uma vez nos esclarece a importância da cosmovisão para o mundo visto por óculos redentivos. Sem essa compreensão cristãos não terão condições de cumprirem devidamente sua missão, que não é apenas evangelizar, mas, glorificar a Deus entre todas as nações. Por isso nos diz o Salmo 98:

Cantem ao Senhor um novo cântico, pois ele fez coisas maravilhosas; a sua mão direita e o seu braço santo lhe deram a vitória!
O Senhor anunciou a sua vitória e revelou a sua justiça às nações.
Ele se lembrou do seu amor leal e da sua fidelidade para com a casa de Israel; todos os confins da terra viram a vitória do nosso Deus.
Aclamem o Senhor todos os habitantes da terra! Louvem-no com cânticos de alegria e ao som de música!
Ofereçam música ao Senhor com a harpa, com a harpa e ao som de canções,
com cornetas e ao som da trombeta; exultem diante do Senhor, o Rei!
Ressoe o mar e tudo o que nele existe, o mundo e os seus habitantes!
Batam palmas os rios, e juntos, cantem de alegria os montes;
cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com retidão.

Salmos 98 (NVI)


[i] O autor é bacharel em teologia pelo Centro de Estudos Teológicos Brasileiro; Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade Joaquim Nabuco; Mestrando em Estudos Teológicos pelo Mints International Seminary, Miami. É professor de Teologia Sistemática no Seminário Congregacional do Nordeste (Campus Recife e Maceió) e no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil, campus Recife. É presbítero na Igreja Evangélica Congregacional de Casa Amarela na cidade do Recife em Pernambuco.

[ii] Ronaldo Lidório Comunicação e Cultura, Ed. Vida Nova, 2014, p.59.

[iii] Franklin Ferreira –  O Credo dos Apóstolos – As doutrinas centrais da fé cristã, p.110,111. Ed. FIEL.

[iv] Louis Berkhof - Teologia Sistemática, p.119. Ed. Cultura Cristã.

[v]  Ao tratar de ordem missional na criação ressalto que tudo que foi criado por Deus rende glória ao Criador, a criação adora ao Criador e lhe obedece às ordens que são manifestadas como obra da providência, sejam de forma ordinária ou de forma extraordinária, logo concluo que a criação também atende a um chamado missional no que se refere a proclamar a glória de Deus (Salmos 19).

[vi] Charles Hodge  Teologia Sistemática, p. 422, ed. Hagnos.

[vii] Herman Bavinck Dogmática Reformada, vol 2, p. 438 – Ed. Cultura Cristã.

[viii] Me refiro ao julgamento cultural baseado em valores culturais peculiares de um povo, ao utilizar o termo ética aqui não há ligação com o julgamento da ético-teológico, mas, a um sistema de costumes e valores de um povo sendo ou não antagônicos ao cristianismo.

[ix] Ao me referir e usar o termo êmico, bem trabalhado pelo antropólogo e missiólogo, Ronaldo Lidório, verso sobre a observação do homem pela lente dele mesmo, observando a cultura por pela ótica do nativo, isolando tal análise de um exame teológico.

[x] Ronald Nash - Cosmovisões em conflito, Editora Monergismo, p.27.

[xi] Ibdem, p.22.


23 de mar. de 2016

O Pacto de Obras

Por R.C. Sproul

A teologia do pacto é muito importante por várias razões. Embora a teologia do pacto, em torno de milênios, encontre sua formulação mais refinada e sistemática na Reforma Protestante. Sua importância, no entanto, tem sido intensificada em nossos dias por causa de sua relação com outra teologia que é relativamente nova. No final do século XIX, a teologia chamada de "dispensacionalismo" surgiu como uma nova abordagem para a compreensão da Bíblia. A velha Bíblia de Referência Scofield definiu dispensacionalismo em termos de sete dispensações distintas, de períodos, de tempos, dentro de Sagrada Escritura. Cada dispensação foi definida como "um período de tempo durante o qual o homem é testado em relação a obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus" (p. 5, Scofield Reference Bible). Scofield distinguiu sete dispensações, inclui inocência, consciência, governo civil, promessa, lei, graça e o período do reino. Contra esta visão diversificada da história da redenção, a teologia do pacto visa apresentar uma imagem clara da unidade da redenção, tal unidade é vista na continuidade dos pactos que Deus fez ao longo da história e como eles são cumpridos na pessoa e obra de Cristo.

Além da contínua discussão entre dispensacionalistas tradicionais e teólogos reformados no que diz respeito à estrutura básica da revelação bíblica, tem surgido em nossos dias uma crise ainda maior no que diz respeito à nossa compreensão da redenção. Esta crise se concentra no lugar da imputação, em nossa compreensão da doutrina da justificação. Assim como a doutrina da imputação foi a questão central no debate do século XVI entre os reformadores e os católicos romanos no entendimento da justificação, então agora a questão da imputação cresceu novamente, mesmo entre os evangélicos professos que negam a compreensão Reformada da imputação. O cerne desta questão da justificação e imputação é a rejeição do que é chamado por pacto das obras. A teologia da aliança histórica faz uma importante distinção entre o pacto das obras e o pacto da graça. A aliança das obras refere-se à aliança que Deus fez com Adão e Eva em sua pureza original, antes da queda, em que Deus lhes prometeu bem-aventurança se fossem obedientes as suas ordens. Após a queda, o fato de Deus continuar a promessa de redenção para as criaturas que violaram o pacto das obras, esse andamento da promessa de redenção é chamado de aliança da graça.

Tecnicamente, a partir de uma perspectiva, todos os pactos que Deus faz com suas criaturas são graciosos, no sentido que Ele não é obrigado a fazer quaisquer promessas a suas criaturas. Mas a distinção entre o pacto das obras e o pacto da graça adquire vital importância, uma vez que tem a ver com o Evangelho. O pacto da graça indica a promessa de Deus para nos salvar, mesmo quando deixamos de guardarmos as obrigações impostas na criação. Isto é visto com mais importância na obra de Jesus como o novo Adão. Repetidas vezes o Novo Testamento faz a distinção e contraste entre a falha e calamidades trazidas sobre a humanidade através da desobediência de primeiro Adão, e os benefícios que fluem através da obra de obediência de Jesus, que é o novo Adão. Embora haja uma clara distinção entre o novo e o velho Adão, o ponto de continuidade entre os dois é que ambos foram chamados a apresentar perfeita obediência a Deus.

Quando entendemos a obra redentora de Cristo no Novo Testamento, concentramos nossa atenção em grande parte em dois aspectos do mesmo. Por um lado, nós olhamos para a expiação. Isso claro nos ensinamentos do Novo Testamento, que na expiação Jesus carrega os nossos pecados e é punido por eles em nosso lugar. Isto é, a expiação é vicária e substitutiva. Neste sentido, na cruz, Cristo tomou sobre si as sanções negativas da antiga aliança. Ou seja, ele suportou em seu corpo a punição devida por àqueles que violaram não só a lei de Moisés, mas também a lei que foi imposta no paraíso. Ele tomou sobre si a maldição merecida por todos aqueles que desobedeceram a lei de Deus. Isto, a teologia reformada chama de "a obediência passiva de Jesus". Este ponto foca para a sua vontade de submeter-se a condição de receber a maldição de Deus em nosso lugar.

Além do cumprimento negativo do pacto de obras, ao tomar a punição devida àqueles que o desobedeceram, Jesus oferece a dimensão positiva que é vital para a nossa redenção. Ele ganha a bênção do pacto de obras para a descendência de Adão que deposita fé nele. Enquanto Adão foi o transgressor da aliança, Jesus é o cumpridor da aliança. Onde Adão não conseguiu conquistar a bem-aventurança da árvore da vida, Cristo conquistou a bem-aventurança por sua obediência, o que proporciona bem-aventurança para aqueles que depositam sua fé nele. Nesta obra de cumprir o pacto para nós em nosso lugar, a teologia fala sobre a "obediência ativa" de Cristo. Ou seja, a obra redentora de Cristo inclui não só a sua morte, mas a sua vida. Sua vida de perfeita obediência torna-se o único fundamento da nossa justificação. É a sua perfeita justiça, adquirida através de sua obediência perfeita, que é imputada a todos os que depositam sua fé nele. Portanto, a obra de Cristo de obediência ativa é absolutamente essencial para a justificação de qualquer um. Sem obediência ativa de Cristo ao pacto das obras, não há nenhuma razão para a imputação, não há motivo para a justificação. Se nós tiramos o pacto das obras, nós tiramos a obediência ativa de Jesus. Se tiramos a obediência ativa de Jesus, tiramos a imputação da sua justiça em nossa vida. Se tiramos a imputação da justiça de Cristo para nós, tiramos a justificação pela fé. Se nós tiramos a justificação pela fé, tiramos o Evangelho, e nós somos deixados em nossos pecados. Nós somos deixados como os filhos miseráveis de Adão, que só podem olhar para a frente sentindo a plena medida de maldição de Deus sobre nós por nossa desobediência. É a obediência de Cristo, que é o fundamento de nossa salvação, tanto na sua obediência passiva na cruz, como sua obediência ativa em sua vida. Tudo isso está indissociavelmente relacionado com a compreensão bíblica de Jesus como o novo Adão (Rm. 5:12-20), que teve êxito onde o primeiro Adão falhou, que prevaleceu onde Adão perdeu. Há nada menos do que a nossa salvação em jogo nessa questão.

***

Fonte: Ligonier

Traduzido por Pedro Paulo.


11 de mar. de 2016

Política sob perspectiva reformacional: O Motivo Básico Cristão

Por Thomas Magnum


O que conhecemos como motivo básico cristão é a linha histórico/redentiva de: Criação/Queda/Redenção. A importância dessa questão se expande por toda teologia reformada como uma importante questão para uma hermenêutica redentiva. O importante livro: A Missão de Deus de Christopher J. H. Wright, nos mostra que há uma linha hermenêutica missional nas Escrituras, sua abordagem é uma excelente defesa do método histórico/redentivo para uma perspectiva missional. Podemos dizer que o lastro é bem maior que não se aplica somente a o pensamento missiológico ou a teologia da missão, mas, o motivo básico cristão se aplica as mais variadas áreas da teologia e da cosmovisão cristã e a todas as atividades exercidas pela igreja.

 

Muito se tem debatido no Brasil sobre questões políticas devido aos freqüentes escândalos envolvendo importantes nomes do governo nacional. O crescimento da inflação causa interesse no povo pela informação econômica, o fato é que quando temos alterações em nosso bolsos é quando nos interessamos mais em entender de economia, na verdade na maioria das vezes perdemos o tempo, a banda passou enquanto  o país estava numa doce ilusão semelhante a Alice nos País das Maravilhas. Enquanto era dito que os cofres públicos estavam muito bem, obrigado, e muito da riqueza do país estava indo para vários lugares menos para o crescimento do país, enquanto não afetava diretamente os bolsos do povo, as multidões nesse Brasil varonil não se preocupavam com política, nem com o que se estava fazendo com verbas e mais verbas em apoio a conchavos políticos na América Latina com interesses escusos que são uma realidade quase sendo esfregada no rosto de cada brasileiro. Enfim, perdoe-me a divagação, mas, o crescente interesse político por um dos lados é porque estamos sendo extremamente prejudicados diretamente. Mas por outro lado existe um crescente interesse de cristãos principalmente jovens, por política. O que preocupa é que tais interesses não são regados por um olhar teológico e consequentemente acarretará erros na formação de um pensamento político.

Podemos exemplificar isso de forma muito simples, a teologia reformada tem trabalhado questões relacionadas à cosmovisão cristã de forma muito importante, isso é resultado da ênfase dada pelos reformadores na vocacionalidade dos crentes ou ao que conhecemos como sacerdócio universal de todos os crentes. Essa vocação se estende a todas as áreas de atuação da vida e conhecimento humano. Francis Schaeffer dizia que o Marxismo é uma heresia cristã porque tem um fim soteriológico que é empregado no proletariado que atua como um messias que trará a igualdade através da revolução. Temos aqui uma substituição do Cristo como libertador, resgatador, redentor dos eleitos. Temos uma distorção da redenção.

Ao termos o motivo básico cristão: criação - queda - redenção, podemos avaliar toda e qualquer ideologia ofensiva ao homem pelo homem. Quando o ideal criacional é subjulgado por ideologias que acabam tendo também um motivo básico que confrontam com o motivo cristão o sistema entra em colapso com a realidade última do telos humano. Ao termos uma substituição do conceito de queda, se corrompe o conceito de justiça na sociedade e quebra o sentido de juízo do crime e da maldade seja pelo poder despótico seja no âmbito civil/jurídico. E ao substituirmos o conceito redentivo teremos um messianismo ideológico que tomará assento soberano com ideologias totalitárias detonando os conceitos de liberdade seja na religião, educação, economia, arte, etc. Quando o conceito da redenção é substituído por uma ideologia automaticamente temos um ato idolátrico.

Toda cosmovisão está fundamentada em um motivo básico, por isso toda ideologia tem reais intenções redentivas, alterando o sentido de pecado e provavelmente o transferindo para um outro ponto que representará a culpa que não seja o próprio homem, mas, a fatores externos e que não estão sob seu controle, a solução para esse ideário será uma alternativa redentiva como no caso do marxismo que totalitariza o Estado ou no caso do Liberalismo que põe o homem entronizado. Temos como segue um exemplo disso.



Veja que a visão Totalitária tem o Estado como cabeça, na análise das demais visões vemos que o motivo básico é evidentemente corrompido também. Ao corromper a perspectiva criacional também se corrompe o conceito de queda e de redenção e se sobrepõe esses conceitos, com alternativas que tomam o lugar deles, mas, exercendo a mesma função na cosmovisão. Como nos diz o professor David T. Koysis:

A maior parte dos movimentos políticos tenta recrutar entusiastas com lemas concisos e populares que ficam bem na faixa e soam bem nos lábios de que marcha pelas ruas. “Liberté, égalité, fraternité!” “Vida, liberdade e busca da felicidade!” “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos” “Todo poder para o povo!” Estas bandeiras têm a vantagem de ser facilmente compreendidas, de simplificar o que é complexo em vista de uma finalidade política. Contudo, elas também enganam seus potenciais seguidores, levando-os a crer que a salvação é um assunto simples – mera questão de, por exemplo, proclamar a emancipação, garantir os direitos do povo, decretar a prosperidade universal ou legislar para acabar com a pobreza, a opressão, os sem-teto e assim por diante. Junto com tudo isso, vem também a tendência a pressupor  que fazer justiça significa apenas remover os obstáculos que se interpõe no caminho dela; depois disso, a “sociedade justa” surgirá sem nenhum esforço, como que por encanto.  Talvez o exemplo mais famoso dessa filosofia seja o postulado marxiano de que um breve episódio revolucionário pelo qual o proletariado exproprie os bens da burguesia poderá produzir imediatamente a sociedade sem classes[i].

Não se poderá ter uma correta percepção se não identificarmos como cristãos o motivo básico que rege a vida humana e todas as esferas que a cercam. Fica claro que quando temos uma falsa concepção do homem e do que ele é e em seu estado alocado num contexto social e psicológico apontado pela realidade descrita nas verdades da revelação de Deus, que é a única forma que o mostrará quem realmente ele é ontologicamente, pelo fato de que ao se retirar da conjuntura social o conceito bíblico de Queda temos uma erupção de desordem e um alargamento da maldade descontrolada, temos uma barbárie.

Diferenças na visão da natureza humana refletem-se em diferenças na visão dos processos sociais. Isso não significa apenas que os processos sociais são vistos como atenuadores das fraquezas da natureza humana em uma visão e como agravadores em outra. A própria forma de funcionar e de não funcionar dos processos sociais é vista de modo diferente [...] Os processos sociais englobam uma enorme gama de elementos, do idioma à guerra, do amor aos sistemas econômicos[ii].

Ainda podemos nos aperceber disso de forma mais clarificada no que nos diz o filósofo holandês Herman Dooyeweerd que

O Motivo básico da religião cristão – criação, queda e redenção por meio de Cristo Jesus – opera por meio do Espírito de Deus como força motriz na raiz religiosa da vida temporal. Assim que toma conta de nós por completo, promove uma conversão radical da nossa posição diante da vida e de toda a concepção da vida temporal. A profundidade dessa conversão só pode ser negada por aqueles que não conseguem fazer justiça à integralidade e do caráter radical do motivo básico cristão. Aqueles que atenuam a antítese absoluta, buscando inutilmente ligar esse motivo básico cristão aos das religiões apóstatas, acabam de fato tomando parte nessa negação.

Mas aqueles que, pela graça, chegam ao verdadeiro conhecimento de Deus e deles próprios, inevitavelmente vivenciam a libertação espiritual do jugo e do fardo do pecado sobre a concepção que têm da realidade, mesmo sabendo que o pecado não deixará de existir em suas vidas. Eles percebem que nada na realidade criada fornece alicerces nem uma base sólida para a existência. Compreendem como a realidade temporal e seus aspectos e suas estruturas multifacetadas e cheias de nuances estão concentrados como um todo na comunidade  básica religiosa  da dimensão espiritual da humanidade. Veem que a realidade temporal procura incansavelmente sua origem divina no coração humano, e compreendem que a criação não pode descansar até que ela descanse em Deus[iii].

A compreensão e a defesa que a teologia reformada faz do motivo básico e de uma cosmovisão que tem suas raízes na teologia do pacto são a melhor alternativa teológica para uma leitura de mundo genuinamente cristã, o calvinismo tem refletido numa base teológica solidificada pelas Escrituras e que Deus é soberano sobre a criação e sobre todas as esferas que existem nela que Ele mesmo criou e designou o homem para cumprimento dos mandatos da criação. Portanto observando toda e qualquer ideologia político/social notamos uma deformação dos mandatos criacionais – Espiritual, Social e Cultural. Kuyper nos elucida sobre as teses calvinistas de governo:

1 – Somente Deus – e nunca qualquer outra criatura – possui direitos soberanos sobre o destino das nações, porque somente Deus as criou, as sustenta por seu grande poder, e as governa p0r suas ordenanças.

2 – O pecado tem, no campo da política, demolido o governo direto de Deus, e por isso o exercício da autoridade com o propósito de governo tem sido subsequentemente conferido aos homens como um remédio mecânico.

3 – E, em qualquer forma que esta autoridade possa revelar-se, o homem nunca possui poder sobre seu semelhante em qualquer outro modo senão por uma autoridade que desce sobre ele da majestade de Deus[iv].

A Soberania das Esferas é a forma ideal de compreendermos o motivo básico cristão de Criação – Queda – Redenção. Mas vejamos então o que é Soberania das Esferas, nos diz Solano Portela que

Em resumo, ele ensina que cada instituição criada por Deus (a família, a escola, o estado), possui uma área específica de autoridade e regência, ou seja, são esferas bem delimitadas e específicas.

Isso não significa que tais esferas sejam autônomas. Ainda que independentes, cada uma deve responder a Deus, o doador desta autoridade. A soberania de cada uma quer dizer que elas não devem usurpar ou interferir na autoridade da outra esfera. Cada uma dessas esferas, autoridades em si, é responsável por sua missão e pelas suas ações, na providência divina, perante Deus.


Por exemplo, no caso de uma escola cristã, ela deve entender que não usurpa a autoridade da família, nem da igreja. Muito menos substitui essas outras esferas, mas deve trabalhar conjuntamente, em colaboração e respeito. A esfera da escola, e nisso ela tem autoridade, é ministrar conhecimento, sendo responsável, perante Deus, de transmitir esse conhecimento reconhecendo o Criador em todas as áreas do saber[v].

Com esse esclarecimento podemos ilustrar a importância do motivo básico cristão da seguinte forma



Nos diz o falecido teólogo bíblico do Antigo Testamento Gerard Van Gronigen que

Era para o homem e a mulher exercitarem suas prerrogativas reais governando sobre o cosmos, desenvolvendo-o e simultaneamente mantendo-o. Todas as formas de vida na terra foram, de forma específica, colocadas sob a supervisão dos vice-gerentes humanos. Com esta responsabilidade, veio o privilégio de usar plantas, seus frutos e sua semente para manter a vida e a energia para realizar as tarefas reais. A humanidade poderia responder obedientemente ao mandato cultural para a glória de Deus por causa da sua criação à imagem e semelhança de Deus. Deus, por meio da sua exposição deste mandato, colocou a humanidade em um relacionamento de governador sobre o domínio cósmico. Mas este governo envolvia trabalho. O trabalho é, consequentemente, tanto um privilégio real como também uma responsabilidade[vi]

Essa é a importância de compreendermos a política a luz das Escrituras, há um mandato cultural que envolve nossa atividade nas esferas criadas por Deus, essa responsabilidade cultural não se esvaiu com o pecado, certo é que após a queda o pecado afeta totalmente a percepção de mundo e sobre a vontade de Deus que Adão e Eva tinham e o que sua semente teve e o que temos hoje, toda maldade, depravação moral, aversão a religião e a verdade é decorrente do pecado. Ao identificarmos que Deus é criador e soberano e que em todas as esferas deve ser Ele glorificado, precisamos entender um pouco mais sobre a Soberania das Esferas e sua relação com o Estado.

Num sentido calvinista nós entendemos que a família, os negócios, a ciência, a arte e assim por diante, todas as esferas sociais que não devem sua existência ao Estado, e que não derivam a lei de sua vida da superioridade do Estado, mas obedecem uma alta autoridade dentro de seu próprio seio; uma autoridade que governa pela graça de Deus, do mesmo modo como faz a soberania do Estado.

Isso envolve a antítese entre o Estado e a Sociedade, mas com a condição de não concebermos esta sociedade como um conglomerado, porém como analisada em suas partes orgânicas, para honrar, em cada uma destas partes, o caráter independente que pertence a elas.

Neste caráter independente está necessariamente envolvida uma autoridade superior especial, a que intencionalmente chamamos de soberania nas esferas sociais individuais, a fim de que possa estar  claro e decididamente  expresso que estes diferentes desenvolvimentos da vida  social nada tem acima deles exceto Deus, e que o Estado não pode intrometer-se aqui e nada tem a ordenar em seu campo. Como vocês imediatamente percebem, esta é a questão profundamente interessante de nossas liberdades civis[vii].

As Esferas de Soberania nos mostram e garantem a liberdade das instituições civis e também sua dever para com Deus que é o soberano sobre todas as esferas sociais. Gostaria de destacar aqui alguns pontos importantes no pensamento de Kuyper sobre uma teoria política reformada calvinista.

- A Liberdade: O calvinismo levou a lei pública a novos caminhos, primeiro na Europa Ocidental, depois nos dois Continentes, e hoje mais e mais entre todas as nações civilizadas, é admitido por todos os estudantes científicos, se não ainda plenamente pela opinião pública.

- A Visão Abrangente da Soberania de Deus – Este princípio dominante não era, soteriologicamente, a justificação pela fé, mas, no sentido cosmologicamente mais amplo, a Soberania do Deus Trino sobre todo cosmos, em todas as suas esferas e reinos, visíveis e invisíveis. Essa é uma soberania primordial que se irradia na humanidade numa tríplice supremacia, a saber:

-A Soberania do Estado
-A Soberania da Sociedade
-A Soberania da Igreja

Portanto teremos alguns princípios do mandato cultural relacionado à política.

1-Deus é o grande Soberano e todo governo pertence a Ele;

2-Todo governo humano deve estar submisso a Deus, pois seu poder foi delegado pelo próprio Deus;

3-Todo governo deve atentar para os mandamentos de Deus, tais mandamentos são a expressão da vontade de Deus, seja por expressa aplicação ou aplicação por principio;

4-A humanidade foi criada à imagem e semelhança de Deus, por isso deve ser governada com dignidade, liberdade e integralidade.
Conclusão

O crescente interesse pela política no Brasil, também por parte de cristãos tem se dado ao estado caótico da moral parlamentar e do desmoronamento econômico no país com grandes escândalos recorrentes como mensalão, petrolão e tudo que tem decorrido das mazelas da ideologia socialista que tem herdado o Brasil. O calvinismo tem uma teoria política que pode atender a uma demanda para esse país, precisamos de crentes versados nas ciências sociais e teologicamente orientados para lerem suas áreas de conhecimento com lentes bíblicas e centralizadas em Cristo e na redenção. O motivo básico cristão é a melhor forma de contribuirmos para um crescimento no país. A Igreja deve estar envolvida nisso e sair do gueto teológico e aplicar sua teologia a realidade do mundo, devemos debater, estudar, mas, devemos empregar isso e não nos perdermos em discussões que não saem da internet, da academia e dos seminários. A Igreja pode fazer algo, atentemos para a Escritura.


[i] Visões e Ilusões Políticas, ed. Vida Nova, 2014, p.319.

[ii] Thomas Sowell, Conflitos de Visões – Origens Ideológicas das Lutas Políticas, p. 83 – Ed. É Realizações

[iii] Herman Dooyeweerd, Raízes da Cultura Ocidental, Ed. Cultura Cristã, 2015, p.55.

[iv] Abraham Kuyper, Calvinismo, Ed. Cultura Cristã, 1ª edição 2002, p.92

[v] Solano Portela, Artigo publicado no blog – O Tempora, O Mores.

[vi] Gerard Van Groningen, Criação e Consumação, vol.1. Ed. Cultura Cristã, p.90.

[vii] Calvinismo, p.98.

26 de fev. de 2016

Aliança da Redenção

Por Michael Horton

Quase todas as alianças bíblicas são pactos históricos feitos por Deus com suas criaturas. A aliança da redenção, porém, é um pacto eterno entre as pessoas da Trindade. O Pai elege um povo no Filho, como seu mediador, que será levado à fé salvadora por meio do Espírito. Assim, a aliança feita pela Trindade na eternidade já leva em conta a queda da raça humana. Escolhidos dentre a massa condenada da humanidade, os eleitos não são melhores ou mais bem qualificados que o restante. Deus simplesmente escolheu, de acordo com a sua própria liberdade, demonstrar a sua justiça e a sua misericórdia, e a aliança da redenção é o ato de abertura desse drama da redenção.

Já podemos ver como uma estrutura pactual desafia a ideia de um déspota solitário. O Pai elege um povo no Filho por meio do Espírito. Nossa salvação, portanto, surge primeiro pela solidariedade das pessoas da divindade. A alegria de dar e receber, experimentadas pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo derrama-se, por assim dizer, sobre o relacionamento Criador-criatura. Na aliança da redenção, o amor do Pai e do Espírito pelo Filho é demonstrado na dádiva de um povo que o terá como sua cabeça viva. Ao mesmo tempo, o amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito é demonstrado pelo seu compromisso de redimir essa família a um grande custo pessoal.

É por isso que não devemos procurar o decreto secreto de Deus na predestinação ou tentar encontrar evidência dela em nós mesmos, mas, como insistia Calvino, ver Cristo como o “espelho” de nossa eleição. A predestinação de Deus nos é escondida, mas Cristo não é. O desvendar do mistério oculto em eras passadas, a pessoa e a obra de Cristo, torna-se o único testemunho confiável da nossa eleição. Aqueles que confiam em Cristo pertencem a Cristo e são eleitos em Cristo.

Até aqui ofereci algumas definições, mas ainda não apresentei qualquer defesa bíblica. Essa aliança da redenção é produzida por especulação teológica ou por cuidadosa interpretação bíblica?

Em resposta a essa pergunta, devemos observar primeiro que alguns teólogos reformados contemporâneos sugerem que a Escritura é silenciosa sobre essa aliança eterna. Contudo, esse mesmos escritores afirmam a doutrina reformada tradicional da eleição: Deus escolheu muitos da raça condenada de Adão para estarem em Cristo, à parte de qualquer coisa pertencente ou prevista naqueles que foram escolhidos e de acordo somente com a livre graça de Deus. Se nos ativermos simultaneamente à doutrina da Trindade e da eleição incondicional, não fica claro que objeção poderia ser feita, a princípio, para descrever esse decreto divino em termos do conceito de uma aliança eterna entre as pessoas da Divindade. Segundo, não contamos apenas com argumentos a partir do silêncio. No ministério de Cristo, por exemplo, o Filho é representado (especialmente no quarto Evangelho) como tendo recebido do Pai um povo (Jo. 6:39; 10:29; 17:2,4-10; Ef. 1:4-12; Hb. 2:13 citando Is. 8:18), que é chamado e guardado pelo Espírito Santo para a consumação da nova criação (Rm. 8:29,30; Ef. 1:11-13; Tt.3:5; 1 Pe. 1:5). Na verdade, afirmar a aliança da redenção é algo mais que afirmar que a auto-entraga do Filho e a obra regeneradora do Espírito foram a execução do plano eterno do Pai. Não somente fomos escolhidos em Cristo “antes da fundação do mundo” (Ef. 1:4), mas também o próprio Cristo é referido como “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap. 13:8).

A aliança da redenção destaca a soberania e a liberdade de Deus na graça eletiva, como também o caráter trinitariano e especificamente cristocêntrico desse propósito divino. Tudo acontece “em Cristo”; assim a ênfase na teologia da aliança sobre o tema de “Cristo, o mediador”. Mesmo antes da criação e da queda, os eleitos estavam “em Cristo” em termos do propósito divino para a História, ainda que não na História em si. Longe de ser resultado de especulação abstrata, esse conceito da aliança da redenção é um ensinamento revelado da Escritura e a melhor defesa contra essa especulação. Sempre que a soberania de Deus na predestinação for fortemente defendida fora de um arcabouço de aliança, a revelação concreta de nossa eleição em Cristo, de acordo com a promessa do evangelho, cede a debates teóricos que nos levam a especulações sem fim sobre os conselhos escondidos de Deus.

Apesar desse consenso passado, teólogos reformados em nossos dias não estão unanimemente persuadidos que o decreto eterno pode ser formalizado como uma aliança com base na exegese. Por exemplo, O. Palmer Robertson reconhece o decreto eterno:

Mas afirmar o papel da redenção nos conselhos eternos não é o mesmo que propor a existência de uma aliança pré-criação entre Pai e Filho. Um sentido de artificialidade tempera o esforço de estruturar em termos pactuais os mistérios dos conselhos eternos de Deus. A Escritura simplesmente não diz muito sobre o formato pré-criação dos decretos de Deus. Falar concretamente sobre uma “aliança” intertrinitariana [sic] com termos e condições entre Pai e Filho, mutuamente aprovados antes da fundação do mundo, é estender os limites da evidência das Escrituras além do que é próprio [1].

Além do mais, como uma “disposição soberana” poderia ser verdadeira no caso da Trindade?

Aqui vemos novamente os perigos inerentes a uma definição estreita demais de aliança. Nas passagens citadas acima, parece claro que as pessoas da Trindade estavam envolvidas numa disposição “pré-temporal” de alguma espécie: a eleição de um povo dado ao Filho como mediador a ser preservado pelo Espírito. Nessas passagens, especialmente no Evangelho de João, Jesus fala repetidas vezes de “aqueles que tu me deste” (17:6,9,11,12). A própria noção de mediação soteriológica requer alguma espécie de concordância de juramento. Na verdade, é exatamente essa aliança trinitariana que é capaz de contrabalancear uma tendência hipercalvinista de soteriologia unitariana em que “Deus” (isto é, o Pai) soberanamente decreta a salvação e reprovação sem ser pela operação do Filho e do Espírito. Uma soteriologia trinitariana emerge necessariamente dessa ênfase. “Assim como a bênção de Deus existe na relação livre das três Pessoas do Ser adorável, do mesmo modo, o homem encontrará bênção no relacionamento pactual com Deus”, escreve Vos [2].

Parte da dificuldade para os intérpretes é que essas passagens não identificam especificamente o decreto como uma aliança. No entanto, como já vimos, a aliança davídica só foi reconhecida como tal pelos profetas muito mais tarde (Sl. 89 e 132). Apesar de sua acusação de que essa doutrina de aliança é especulativa, o próprio Robertson introduz alianças antes jamais ouvidas. Além das alianças com Noé, Abraão, Moisés e Davi, ele acrescenta “uma aliança de começo” (com Adão pós-lapsariano) e uma “aliança de consumação” (Cristo) , nenhuma das quais é identificada especificamente como aliança na Escritura. Certamente a Escritura não reconhece o tipo de tratado de suserano-vassalo entre as Pessoas da Trindade. Afinal, cada pessoa é igualmente divina: não há senhores e servos no relacionamento trinitariano eterno. Além do mais, não existe uma estrutura formal de tratado nessa aliança da Escritura – nenhum prólogo histórico, nem estipulações, nada de sanções, e assim por diante. Já vimos, porém, que nem todas as alianças bíblicas se encaixam no estilo de suserania. Só uma definição exageradamente restrita de aliança poderia justificar a ideia de que a aliança da redenção é especulativa e não bíblica.

Portanto, a aliança da redenção é tão claramente revelada na Escritura quanto a Trindade e o decreto eterno de eleger, redimir, chamar, justificar, santificar e glorificar um povo para o Filho. Ao mesmo tempo, esse propósito eterno teria permanecido escondido de nós se não tivesse sido realizado em nosso tempo e espaço. É aí que se dá maior atenção bíblica. Enquanto a aliança da redenção é eterna e tem como participantes as pessoas da Divindade, as alianças da criação e da graça se desenrolam na história humana e tem como parceiros o Criador e criatura.

Uma das declarações mais sucintas desse esquema das duas alianças históricas se encontra no capítulo sete da Confissão de Fé de Westminster:

A distância entre Deus e a criatura é tão grande que, embora as criaturas racionais lhe devam obediência como seu Criador, nunca poderiam fruir nada dele, como bem-aventurança e recompensa, senão por voluntária condescendência da parte de Deus, a qual agradou a ele expressar por meio de um pacto. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida prometida a Adão e, nele, à sua posteridade, sob condição de perfeita e pessoal obediência. Tendo-se o homem tornando, pela sua queda, incapaz de ter vida por meio desse pacto, o Senhor dignou-se a fazer um segundo pacto, geralmente chamado de pacto da graça; nesse pacto da graça ele livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por meio de Jesus Cristo, exigindo deles a fé nele, para que sejam salvos, e prometendo o seu Santo Espírito a todos os que estão ordenados para a vida, a fim de dispô-los e habilitá-los a crer.
___________

[1] Robertson, Christ of the Covenants, 54
[2] Vos, Redemptive History and Biblical Interpretation, 245

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Trecho do livro O Deus da Promessa - Introdução à Teologia da Aliança. Ed. Cultura Cristã